domingo, 2 de novembro de 2008


CONSENSO BRASILEIRO DE ESPECIALISTAS SOBRE O TDAH EM ADULTOS

A existência da forma adulta do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) foi oficialmente reconhecida pela Associação Americana de Psiquiatria em 1980, por ocasião da publicação do DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual, 3rd edition).
Ainda hoje, não obstante, esta condição freqüentemente persiste controversa no meio médico, com critérios diagnósticos discutíveis e fronteiros ainda incertas; assim, este diagnóstico é raramente realizado, persistindo o estereótipo de um transtorno acometendo meninos hiperativos que apresentam desempenho escolar inadequado.
A inclusão do diagnóstico do TDAH no capítulo dos Transtornos da Infância contribuiu para reforçar que o TDAH se trataria de uma condição restrita à infância, muito embora o texto da DSM-IV reconhecia que em alguns casos o transtorno pudesse persistir até a vida adulta.
O termo hiperatividade atingiu ampla divulgação a partir da década de 70. Acreditava-se, à época, que a melhora da hiperatividade e impulsividade ao final da adolescência
corresponderia à remissão da enfermidade.
A publicação da DSM-III em 1980 revolucionou a visão médica acerca do TDAH introduzindo a nomenclatura que persiste até hoje, bem como introduziu mudanças nos critérios, na relevância da desatenção e na possibilidade de haver uma forma adulta, chamada de “Tipo Residual”. Um ano mais tarde, Wender, do grupo de Utah publicava os primeiros critérios para o diagnóstico em adultos. Cerca de 10 anos depois, era publicado o primeiro estudo que estabelecia uma base neurobiológica para o TDAH, utilizando exames de PET–SCAN (tomografia de pósitrons) em adultos portadores do transtorno.
Até a publicação da revisão da DSM-III em 1987, não havia um número significativo de publicações sustentando a idéia que o TDAH pudesse ocorrer sem hiperatividade.
Em 1994, com a publicação do DSM-IV, já havia uma gama de estudos documentando a presença de TDAH com predomínio de desatenção e a partir daí, inúmeros estudos publicados indicaram que crianças e adolescentes com TDAH mantinham sintomas do transtorno na vida adulta, ao contrário do que se acreditava nos anos 70.
Os estudos mostram que é possível realizar o diagnóstico de TDAH de modo confiável em adultos quando são utilizados critérios bem definidos. Em estudo epidemiológico recente, a validade do diagnóstico de TDAH em adultos foi demonstrada através da análise fatorial de sintomas auto relatados numa população adulta, onde aqueles indivíduos com maior número de sintomas nucleares de TDAH apresentavam piores indicadores de funcionamento global.
As alterações neurobiológicas em adultos com TDAH, incluindo os padrões de transmissão genética e os achados em estudos neuropsicológicos e de neuroimagem, são semelhantes àqueles encontrados em crianças e adolescentes com o transtorno, o que consolida a validade da forma adulta. Estudos de famílias, de adoção e de gêmeos indicam que o TDAH é um transtorno fortemente herdado.
Estudos com PET-SCAN e Ressonância Nuclear Magnética com Espectroscopia, malgrado não serem indicados para o diagnóstico de TDAH por seu baixo poder preditivo, consistentemente indicam alterações em lobos frontais, corpo caloso, gânglios da base e cerebelo, todos envolvidos nas funções executivas.
Há dois modelos neurobiológicos mais utilizados no entendimento dos déficits associados ao TDAH. O primeiro deles enfatiza o papel da disfunção executiva secundariamente a um controle inibitório deficiente resultante de alterações em circuitaria dorsal fronto-estriatal e ramificações mesocorticais dopaminérgicas. O segundo modelo concebe o TDAH como o resultado de sinalização deficitária de recompensas tardias secundariamente a alterações nos processos motivacionais que envolvem o circuito frontal ventral – estriado e ramificações mesolímbicas, em especial aquelas que terminam no núcleo accumbens.
Diversos autores criticaram a adoção de um único modelo etiológico neurobiológico no TDAH (e de um grupo de sintomas neuropsicológicos nucleares a ele relacionado), indicando que o mesmo não permitiria explicar a grande heterogeneidade observada no desempenho em testes.
Diversos estudos têm sido realizados com o objetivo de investigar a presença de déficits neuropsicológicos e, em especial, de funções executivas em adultos portadores de TDAH. Barkley teorizou que o TDAH pode ser entendido como a expressão de um déficit central de inibição (Teoria do Modelo Híbrido). Apesar de déficits executivos serem freqüentes, exames neuropsicológicos para avaliação dos mesmos não têm valor preditivo suficiente para serem recomendados em adultos. O exame neuropsicológico está particularmente indicado nos casos onde há suspeita de Transtorno de Aprendizado comórbido ou se problemas de aprendizado persistem após tratamento do TDAH.
Apesar dos sintomas de hiperatividade e impulsividade diminuírem significativamente ao final da adolescência, adultos com TDAH mantêm a tríade de sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade em graus variados. Os sintomas na vida adulta têm sua expressão no âmbito das atividades próprias desta faixa etária; assim, a hiperatividade observada em crianças pode corresponder a um excesso de atividades e/ou trabalho em adultos (indivíduos workaholics); do mesmo modo, a impulsividade pode se expressar como términos prematuros de relacionamentos ou direção impulsiva de veículos, havendo uma “correspondência” entre os sintomas infanto-juvenis tais como são enunciados na DSM-IV e aqueles na vida adulta.
Adultos com TDAH têm uma capacidade inconsistente para se concentrar, mas são capazes de fazê-lo em circunstâncias específicas, como quando envolvidos em tarefas que lhe são particularmente estimulantes. Sua dificuldade torna-se mais evidente naquelas situações onde se encontram entediados ou distraídos por estímulos internos (emoções) ou externos, em níveis significativamente maiores que o observado na população em geral, com impacto negativo no desempenho das tarefas.
Um aspecto importante diz respeito a alguns dos sintomas do Módulo de Desatenção do critério A da DSM-IV: embora ditos de “desatenção”, 5 dos 9 itens referem-se a outros domínios cognitivos (envolvendo funções executivas e memória). Isto remete à concepção do TDAH envolver um espectro mais amplo de disfunções neuropsicológicas do que apenas a desatenção, sendo esta última, parte de um quadro mais amplo de comprometimento de Funções Executivas, que também compreendem a ativação para as tarefas, persistência, planejamento, organização, automonitoramento, controle de impulsos, estabelecimento de prioridades, tomada de decisão e integração de diferentes atividades mentais de momento a momento, entre outros. Recebem a denominação “executiva”, diversas habilidades que capacitam o indivíduo ao desempenho de ações voluntárias, independentes, autônomas, auto-organizadas e orientadas para metas. Em termos práticos, este comprometimento das funções executivas acarreta problemas na estimativa e uso do tempo, com o cumprimento de obrigações e dificuldades de colocar na vida prática proposições e combinações feitas no plano teórico. Um déficit de funções executivas é menos percebido em crianças, simplesmente porque elas são supervisionadas (em casa e na escola) e têm menor necessidade de estabelecer sozinhas estratégias de planejamento, hierarquias de prioridades, etc. Estas funções têm um papel cada vez mais importante à medida que o indivíduo amadurece e passa a ser exigido em sua capacidade de autonomia para tomar decisões e resolver problemas do cotidiano.
Escalas de avaliação são úteis para aferir sintomas de TDAH e/ou detalhar o perfil sintomático, porém seu uso deve ser considerado como ferramenta auxiliar para o diagnóstico do transtorno, não substituindo a entrevista clínica, que permanece a base para o diagnóstico.
O sistema DSM-IV e sua utilização nos adultos com TDAH
Os sintomas clínicos apresentados no DSM-IV foram concebidos a partir de estudos de campo, permitindo identificar corretamente crianças e adolescentes (de 7 a 17 anos) com TDAH, utilizando como pontos de corte 6 entre 9 sintomas de desatenção e/ou 6 entre 9 sintomas de hiperatividade-impulsividade (Critério A). Este ponto de corte, entretanto é considerado excessivamente restritivo para uso em adultos, não permitindo identificar um número significativo de indivíduos com comprometimento funcional associado a quadro clínico atual e história pregressa de TDAH. Mesmo não tendo sido inicialmente pretendida para o diagnóstico em adultos, inúmeros estudos clínicos, farmacológicos, genéticos e de neuroimagem, utilizaram a DSM-IV, adaptando os sintomas e os critérios ali indicados59.
Os sintomas arrolados na DSM-IV e seu ponto de corte (critério A) listados como presentes ou ausentes, sem intensidade, gravidade ou incapacidade associada individualmente a cada um deles.
Os sintomas listados na DSM-IV para o diagnóstico de crianças e adolescentes foram adaptados para adultos na escala Adult Self-Report Scale (ASRS, versão 1.1), desenvolvida pela Universidade de Nova York e a Organização Mundial de Saúde, com base nos sintomas da DSM-IV e submetida à validação semântica em nosso meio. A escala ASRS possui 18 itens que contemplam os sintomas do critério A da DSM-IV, modificados para o contexto da vida adulta. Em alguns itens (sintomas adaptados do Critério A da DSM-IV), é considerada “positiva” (áreas sombreadas) as respostas envolvendo uma freqüência menor - “algumas vezes” -; para a maioria dos itens, entretanto são consideradas “positivas” respostas envolvendo as freqüências “freqüentemente” e “muito freqüentemente”. A ASRS foi validada numa população estadunidense adulta no National Comorbidity Survey-Replication. A ASRS deve ser usada naqueles indivíduos suspeitos de apresentarem TDAH; um rastreio consistindo de apenas seis itens da mesma escala (parte A) deve serempregado em estudos populacionais. No caso do rastreio de 6 itens, é considerado como “suspeito” o indivíduo com pelo menos 4 itens “positivos”. No caso de utilização dos 18 itens (partes A e B), segue-se a mesmo ponto de corte estabelecido na DSM-IV: são considerados como positivos aqueles indivíduos que apresentam no mínimo seis sintomas em pelo menos um dos domínios (desatenção – itens 1,2,3,4,7,8,9,10 e 11 - e hiperatividade – itens 5,6,12,13,14,15,16,17 e 18) ou em ambos.

Idade de inicio (critério B)
A idade de início antes dos 7 anos tem sido questionada como critério para o diagnóstico, uma vez que não possui fundamentação empírica e impõe dificuldades práticas para indivíduos que não são capazes de recuperar sintomas precoces e não têm outras fontes de informação sobre a infância. Nos casos de diagnóstico apenas na vida adulta, torna-se ainda mais difícil o estabelecimento da idade de início; sendo possível encontrar na prática clínica indivíduos com início tardio dos sintomas. Embora seja necessário histórico de sintomas de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade remontando a infância ou início da adolescência, não deve ser usada uma idade-limite específica. O relato de início precoce dos sintomas não se associa necessariamente a relato de comprometimento funcional concomitante, especialmente nos casos de predomínio de desatenção. Mais ainda, a compreensão neurobiológica atual do TDAH enfatiza a interação entre vulnerabilidade biológica (determinada fortemente por componentes genéticos) e meio ambiente. Logo, os indivíduos com vulnerabilidades biológicas intermediárias podem demonstrar os aspectos fenotípicos do transtorno apenas em ambientes de alta demanda característicos da vida adulta.

Universalidade dos sintomas (Critério C)
Crianças e adolescentes com TDAH são encaminhados por apresentarem problemas que interferem com os demais – seja em casa ou na escola – porém no caso de adultos a procura pelo tratamento se dá primariamente pelas dificuldades auto-identificadas de baixa produtividade, desorganização, planejamento deficitário, impulsividade, etc. Adultos que recebem o diagnóstico apenas na vida adulta têm um histórico freqüentemente distinto daqueles que já iniciaram algum tipo de tratamento para o transtorno ainda na infância ou adolescência, tendo estes últimos um maior comprometimento funcional em diversas áreas. No caso de adultos são os próprios que fornecem os dados que permitirão ao médico inferir a gravidade e a eficácia do tratamento, ao contrário do que ocorre em crianças e adolescentes, onde é o relato de pais e professores que norteia a conduta terapêutica. Na avaliação do indivíduo adulto com suspeita diagnóstica de TDAH é importante considerar vários contextos possíveis, tais como: a vida conjugal, o ambiente familiar, o trabalho, a administração de recursos financeiros próprios, a vida social, entre outros.

Comprometimento funcional (critério D)
O TDAH se associa a significativo comprometimento em diversas áreas na vida do portador e não pode ser considerado como um transtorno benigno ou de impacto reduzido. O TDAH se associa a maior incidência de delinqüência, acidentes, desemprego e suspensão de carteira de motorista. A prevalência de adultos portadores de TDAH em estabelecimentos prisionais é maior que o esperado pela freqüência do transtorno na população. Um estudo no nosso meio, identificou 54% de portadores de TDAH numa instituição para adolescentes delinqüentes de ambos os sexos. Um histórico significativamente mais grave de álcool e drogas pode ser observado em portadores adultos de TDAH. Tabagismo também é mais comum em portadores de TDAH. Também já foi demonstrada maior incidência de doenças sexualmente transmissíveis em portadores. A incidência de problemas conjugais e os índices de divórcio são maiores nos portadores de TDAH. Menores graus de escolaridade são observados em adultos portadores de TDAH quando os mesmos são comparados a controles pareados sem o transtorno. Adultos auto-referidos a serviços especializados em TDAH podem apresentar maiores índices de ansiedade e depressão que crianças com TDAH acompanhadas até a vida adulta. Apesar do comprometimento funcional ser uma característica importante na forma adulta de TDAH, ele não é específico e pode ser encontrado em diversos outros transtornos distintos do TDAH.
Um estudo epidemiológico recente demonstrou que adultos com diagnóstico de TDAH tendiam a apresentar piores escores em escalas de avaliação de funcionamento global e comprometimento numa série de medidas cognitivas. Por exemplo, o comprometimento funcional indicado como um dos critérios da DSM-IV pode referir-se a infelicidade num casamento onde um dos cônjuges é cronicamente desatento e desorganizado, freqüentemente procurando atividades novas e excitantes para se manter “ativo” e “bem-humorado”, além de dificuldades no emprego por conta de mau desempenho por desatenção e dificuldades em respeitar rotinas e cronogramas. O comprometimento clinicamente significativo deve ser investigado em vários domínios diferentes, mas não deve implicar na exclusão de indivíduos que possam ter adaptado em algum grau seus estilos de vida aos sintomas de TDAH (minimizando, portanto o comprometimento autorelatado). O comprometimento tanto pode ser inferido pela discrepância entre o desempenho e o esperado pelo nível cognitivo global, como pela comparação com os seus pares de um mesmo grupo específico (profissional, acadêmico, etc.). Apesar do
comprometimento funcional ser uma característica importante na forma adulta de
TDAH, ele não é específico e pode ser encontrado em diversos outros transtornos.

Entendimento da natureza dos sintomas (critério E)
Para o diagnóstico do adulto é necessário ainda avaliar se existem comorbidades (em especial Transtorno do Humor e de Ansiedade) e se elas poderiam justificar os sintomas relatados, conforme exige o sistema DSM-IV. A presença de comorbidades psiquiátricas é extremamente comum no TDAH, tanto na sua apresentação infantil quanto adulta, e modifica significativamente a apresentação clínica e o prognóstico. No único estudo epidemiológico onde o diagnóstico de TDAH em adultos foi realizado com instrumento baseado na DSM-IV (National Comorbidity Survey-Replication), a comorbidade com outros transtornos psiquiátricos, calculados na forma de razão de chance (odds ratio para 12 meses e vida inteira) foi significativamente maior que o observado na população em geral. Os valores obtidos (vida inteira) foram: Abuso de Substância - 2,8; Transtornos de Ansiedade - 3,2; Transtornos do Humor – 3; transtornos relacionados ao controle de impulsos (jogo patológico, bulimia, etc.) – 5,9. Num estudo recente, não foi demonstrado efeito do gênero sobre o perfil de comorbidades no TDAH.
Cumpre observar que muitos dos sintomas da DSM-IV listados sob a égide do TDAH são idênticos ou muito semelhantes a vários sintomas listados no diagnóstico de transtornos de humor e ansiedade; o diagnóstico diferencial exige uma avaliação especializada.

Considerações finais e conclusão.
O diagnóstico de TDAH permanece sendo clínico, obtido através de uma anamnese cuidadosa, o emprego de critérios clínicos bem descritos e treinamento no diagnóstico diferencial de transtornos psiquiátricos no adulto. Apesar de inúmeros relatos de alterações eletroencefalográficas, neurofuncionais e de neuroimagem, tais testes e exames laboratoriais não possuem valor preditivo (tanto positivo como negativo) suficientemente alto para recomendar seu uso no ambiente clínico.


Coordenador:
Paulo Mattos

Autores:
André Palmini
Carlos Alberto Salgado
Daniel Segenreich
Eugênio Grevet
Irismar Reis
Luiz Rohde
Marcos Romano
Mário Louzã
Paulo Abreu
Paulo Mattos
Pedro Lima

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